Como nós obtemos a justificação? (Reforma Protestante 500 anos)



Segue abaixo um excerto dos comentários de Cranmer ao Livro do Rei, que era o título popular para “Uma Doutrina e Erudição Necessárias para Todo Homem Cristão; Apresentadas pela Majestade, o Rei da Inglaterra” (1538). Essa edição foi extraída do volume da Sociedade Parker dos escritos de Cranmer (Cambridge University Press, 1840).
Para saber como obtemos nossa justificação, é conveniente considerar, em primeiro lugar, quão rebeldes e pecadores somos todos nós que descendemos de Adão; e por outro lado, que misericórdia há em Deus, que perdoa todas as ofensas de todos os pecadores sinceramente arrependidos por causa de Cristo. Destas duas coisas, nenhum homem é tão ignorante que nunca tenha ouvido falar sobre a queda de Adão, a qual contaminou toda a sua posteridade; e, também, sobre a misericórdia inexplicável de nosso Pai celestial, que enviou o seu Filho unigênito para sofrer a sua severa paixão por nós e derramou o seu preciosíssimo sangue, como o preço da nossa redenção. Mas é muito desejável e esperado que, à medida que os cristãos conheçam esses fatos, cada homem possa reconhecer e, sem dúvida, crer que os mesmos são verdadeiros e verificados em relação a si mesmo, para que se humilhe diante de Deus e reconheça a si mesmo como um miserável pecador que não é digno de ser chamado de seu filho; e ainda seguramente confiar que estando arrependido, o Deus misericordioso está disposto a lhe perdoar. E, a pessoa que não percebe essas duas coisas verificadas em si mesmo, não pode ter qualquer proveito e lucro ao reconhecer e crer que tais coisas podem ser verificadas em outros. Mas, não podemos satisfazer nossas mentes ou firmar a nossa consciência de que essas coisas são verdadeiras, a menos que evidentemente consideremos o que a Palavra de Deus nos ensina.

Os mandamentos de Deus colocam as nossas falhas diante dos nossos olhos, o que nos faz temer e tremer e nos faz ver a ira de Deus contra os nossos pecados, como diz São Paulo: Per legem agnitio peccati [Romanos 3.20], et, Lex iram operatur [Romanos 3.20 e 4.15: Porque pela lei vem o conhecimento do pecado… Porque a lei opera a ira], e faz com que lamentemos e nos arrependamos por termos caído no desagrado de Deus e no cativeiro do Diabo. As graciosas promessas de Deus pela mediação de Cristo nos mostram (e isso para nosso grande alívio e conforto) que quando nos arrependemos… temos o perdão dos nossos pecados, somos reconciliados com Deus e aceitos e considerados justos e retos diante de Deus, somente pela sua graça e misericórdia, as quais ele nos concede e nos dá por causa do seu amado Filho, Jesus Cristo, quem pagou um resgate suficiente por nossos pecados; cujo sangue lava o mesmo; cuja paixão amarga e dolorosa é a única oferta apaziguadora, que afasta de nós a ira de Deus seu Pai; cujo corpo santificado oferecido na cruz é o único sacrifício de cheiro suave e agradável, como diz São Paulo, ou seja, de tal doçura e agrado ao Pai, que por tal sacrifício ele aceita e reputa de semelhante doçura todos aqueles por quem essa oferta foi feita.
A qualquer pessoa que considera e medita em seu coração nesses benefícios de Deus, com inúmeros outros, e assim concebe uma firme confiança e um senso da misericórdia de Deus, de onde brota em seu coração um amor ardente e um zelo fervoroso para com Deus, não é possível que deixe de agir e não esteja pronto para realizar todas as obras que sabe serem aceitáveis a Deus. E somente são agradáveis a Deus aquelas obras provenientes da nossa justificação, pois procedem de um coração agraciado com fé pura e com amor a Deus. Porém, as obras que fazemos antes da nossa justificação não são admitidas e aceitáveis diante de Deus, mesmo que elas pareçam muito boas e gloriosas aos olhos do homem. Pois, apenas após a nossa justificação é que nós começamos a agir de acordo com as exigências da lei de Deus. Logo, após sermos justificados, faremos todas as boas obras de boa vontade, embora não exatamente como a lei exige, isso por causa da fraqueza de nossa carne. Ainda assim, pelo mérito e benefício de Cristo — e lamentando que não possamos fazer todas as coisas do modo mais excelente e devido — todas as nossas obras serão aceitas e consideradas por Deus como as mais excelentes, puras e perfeitas.
Agora, aqueles que pensam que podem obter a justificação por cumprirem a lei, por suas próprias ações e méritos ou por qualquer outro meio além do que foi demonstrado acima, rejeitam a Cristo e renunciam a sua graça. Evacuati estis a Christo, disse São Paulo, em Gálatas 5, quicunque, in lege, judificamini, a gratia excidistis [De Cristo vos desligastes, vós que procurais justificar-vos na lei; da graça decaístes ‒ v. 4]. Estas pessoas não participam da justiça que Cristo adquiriu, nem dos benefícios misericordiosos que lhe são dados. Pois, São Paulo afirma uma regra geral para todos os que buscam esses caminhos para obter a justificação: “Porquanto, desconhecendo a justiça de Deus e procurando estabelecer a sua própria, não se sujeitaram à que vem de Deus” (Romanos 10.1-4); a qual é a justiça de Cristo, por quem somente todos os santos que estão no céu e todos os outros salvos, são declarados justos e justificados. Portanto, a Cristo, nosso único Salvador e Redentor, de quem depende tanto a nossa justificação quanto a salvação de todas as outras pessoas salvas, seja a glória.

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